Por Roberta Lessa

Se você não estava escondido debaixo de uma pedra durante a última cerimônia de entrega dos Grammys, em fevereiro deste ano, já deve ter ouvido falar pelo menos uma vez em Hamilton, a nova sensação do teatro musical americano, principalmente entre o público jovem.

Esbarrei com o musical pela primeira vez nesta ocasião, quando o elenco, que concorria na categoria de Melhor Trilha Sonora, apresentou o número inicial do show, transmitido ao vivo pela premiação. Fiquei de fevereiro a junho para pesquisar mais sobre esta performance, que foi a que mais me chamou à atenção durante a premiação, mas, quando resolvi corri atrás, foi um caminho sem volta: foram três meses de completa fascinação e obsessão pelo musical, tão imersa a ponto de ficar totalmente alheia a qualquer outro tipo de arte ou entretenimento durante todo esse período.

Demorei esse tempo todo também para conseguir resumir em apenas 10 itens (será mesmo?) as razões pelas quais todo amante da cultura pop deveria estar surtando por essa obra de arte.

 

O contexto

Você não vai saber lidar com tanta representatividade envolvida

 

Imagine um musical sobre a vida e carreira de uma das mais desconhecidas figuras políticas americanas, o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Alexander Hamilton. Já parece chato e meio sem noção mesmo que você goste de musicais ou de história, mas e se eu te dissesse que até os maiores haters desses dois elementos estão caindo de amores pela peça, principalmente o público jovem, que não tem tanta familiaridade com frequentar a Broadway?

Isso aconteceu porque os jovens americanos se encantaram com a proposta do musical: a América como ela foi, contada pela América como ela é agora. De forma pioneira, Hamilton assim como seu antecessor “In the Heights” é um musical broadwayano a ser inteiramente cantado em rap, hip-hop, R&B, dancehall e outros ritmos muito distantes do tradicional repertório do centro teatral mais famoso do mundo.

 

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Por ser preenchido por gêneros musicais geralmente compostos e cantados por artistas não brancos, nada mais justo do que refletir essa escolha artística no elenco: pela primeira vez, temos atores negros ou latinos interpretando ícones historicamente brancos, como o próprio Hamilton (Lin-Manuel Miranda), o primeiro presidente americano George Washington (Christopher Jackson) e Thomas Jefferson (Daveed Diggs). Na verdade, todos os membros do elenco são não-brancos, exceto o rei da Inglaterra à época, George III, por motivos justamente caricaturais.

E isso não é apenas temporário, é uma exigência do próprio criador que todas as versões feitas, em todas as cidade e países e formatos, sigam esta recomendação durante a escalação dos atores. Que forma melhor de atrair a juventude do que transbordando representatividade, fazendo com que ela se sinta, pela primeira vez, parte da história da fundação de seu próprio país?

 

As músicas

O caminho sem volta de escutar a trilha sonora

O tópico mais importante, creio eu, afinal, sem músicas não há musical. Como nesse caso a prática faz mais efeito que a teoria, já vou embutindo aqui a playlist do Spotify com a trilha-sonora inteira para que você possa ouvir – mas só depois de terminar a lista toda. Hã!

Para quem é dos inglês, o site Genius tem praticamente um dossiê com o significado de cada um dos 8343219765 versos da trilha sonora. Tô avisando, é um caminho sem volta, depois não reclama!

O criador do musical, Lin-Manuel Miranda (é, o da J-Lo! O da Moana! Da Pequena Sereia live-action!) , que criou e compôs todas as letras e melodias e ainda estrela como personagem principal (SIM!), escolheu o rap como forma principal de narrativa por acreditar na capacidade deste gênero de contar histórias, principalmente a de uma figura tão eloquente quanto Hamilton.

 

 

Aula de história

Senta que lá vem (muita) história

Justamente por se sair tão bem com esse método narrativo, Hamilton é uma aula absurda de história. Eu garanto que, depois de duas ouvidas, a juventude americana pode absorver muito mais sobre a Revolução Americana do que em um ano de aulas nada dinâmicas da disciplina.

Sei disso porque eu, brasileira, tendo estudado muito superficialmente – e há um bom tempo – sobre este episódio da história americana, acabei gabaritando este quiz depois de ler as letras apenas duas vezes. Sério, professores, incorporem estes métodos nas aulas de vocês, os alunos agradecem (abaixo, professores que entenderam o recado e se apresentaram no show de talentos da escola deles com duas músicas da peça hahahaha!).

 

 

Elenco

Deuses olímpicos, também conhecidos como atores da Broadway

Sério. Nem sei quais dos membros do elenco destacar aqui, porque todos são maravilhosos. É claro, depois de um ano em cartaz, a maior parte do elenco já foi substituída, mas para você que é pobre como eu e terá no máximo a oportunidade de ouvir a trilha sonora no seu fonezinho de ouvido, é a voz dessa galera que está eternizada na gravação.

Vou jogar o meu preferido e sair correndo: Leslie Odom Jr. Mentira, tenho que falar de quase todos eles mesmo. Selecionemos, então, aqueles que foram indicados aos Tony Awards desse ano.

 

NEW YORK, NY - FEBRUARY 15: Actor Leslie Odom, Jr. performs on stage during "Hamilton" GRAMMY performance for The 58th GRAMMY Awards at Richard Rodgers Theater on February 15, 2016 in New York City. (Photo by Theo Wargo/Getty Images)
O meu preferido, o citado acima Leslie Odom Jr., interpreta o primeiro amigo e o pior inimigo de Hamilton, Aaron Burr. A combinação de seus talentos em atuação, canto e dança são, para mim, a alma do musical. É impossível não se relacionar com o personagem, sendo também impossível, e nada frustrante, odiar o arquirrival do protagonista. Ah, ele acabou ganhando o prêmio de Ator Principal, mesmo concorrendo contra o próprio Lin-Manuel Miranda.

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A categoria de Ator Coadjuvante dos Tony inclui cinco indicados; em 2016, três deles vieram de Hamilton: Christopher Jackson (o imponente George Washington), Jonathan Groff (o hilário rei George III) e Daveed Diggs, vencedor da categoria, cuja performance como Marquês de Lafayette, no primeiro ato, e Thomas Jefferson, no segundo, é de tirar o fôlego. Ele é o intérprete dos versos mais rápidos e incríveis do show com sua atuação dupla. Infelizmente, assim como Leslie e Lin, ele também deixou o elenco da peça, e agora seguirá carreira na TV e no cinema, estreando em Extraordinário, ao lado de Jacob Tremblay e Julia Roberts.

Na ala feminina, Renée Elise Goldsberry (Angelica Schuyler, cunhada de Hamilton) garantiu o prêmio de Atriz Coadjuvante. Um dos momentos mais sensacionais – se não o maior deles – do musical é dela, durante a música Satisfied. Que. Intensidade. Só ouvindo.

 

Lin-Manuel Miranda

O criador do troço todo

Deixei o intérprete do personagem principal de fora do item anterior porque, sendo o protagonista, compositor e idealizador do projeto, ele é um motivo por si próprio.

Em 2009, Lin foi convidado pela Casa Branca para se apresentar em um evento de arte e poesia organizado pela presidência de Obama. Segundo a programação, ele apresentaria um número de seu primeiro musical, In the Heights (outro caminho sem volta, que também merece uma lista como essa aqui), que fazia sucesso nos palcos na época e que também ganhara o Tony Award de Melhor Musical. No entanto, Lin acabou surpreendendo os presentes ao informar que substituiria seu número conhecido por algo novo, de um projeto inédito que ele estava desenvolvendo ao lado do orquestrador Alex Lacamoire: foi a primeira vez que Hamilton foi apresentado ao mundo.

 

Quando Lin afirma, no vídeo acima, acreditar na combinação entre a vida de Alexander Hamilton e a cultura do hip-hop, os convidados do evento riram. Hoje, sete anos depois, quem está rindo mesmo?

 

 Coreografias

Os movimentos que tornam necessário assistir cada cena mais de uma vez

Outro elemento fundamental de musicais como esse são as coreografias, e as de Hamilton são sensacionais. O coreógrafo Andy Blankenbuehler também levou para casa um Tony Award por esse trabalho. É claro que, se você procurar, encontra o espetáculo inteiro filmado para download na internet, mas assistir desta forma é desaconselhado pelo próprio Lin. No entanto, você pode ter um gostinho das coreografias através de vídeos no YouTube nos quais Andy exibe sua genialidade, explicando a razão de ser de cada passo de dois trechos de My Shot e Yorktown.

 

 Dançarinos

Também conhecidos como semi-deuses da Broadway

Todos os dançarinos de Hamilton, além de executar com perfeição e energia cada passo do show, por mais de duas horas, fazem parte também do coro. Além disso, alguns deles, como a diva Carleigh Bettiol, chegam a substituir os atores principais quando eles não podem se apresentar (quando não dança, ela interpreta Eliza, esposa de Hamilton). Talento pouco é bobagem.

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 Cenografia

Rewiiiiiiind…

Como se não bastasse o efeito maneiríssimo de se ter um palco giratório em um musical, Hamilton tem dois. Que giram em direções opostas. O efeito que isso traz à produção é INCRÍVEL, principalmente em momentos como Ten Duel Commandments, onde um duelo é encenado, e Satisfied, quando… não vou dar spoilers. Quem tiver interesse em saber o que acontece, dá uma buscadinha rápida na internet (ou então compra uma passagem para Nova York, o que for mais fácil para você hahaha).

 

Incentivo à educação

Foco na juventude

Como se já não bastasse esse altíssimo nível artístico, Hamilton tem um papel social, ajudando a desenvolver a educação dos jovens novaiorquinos de maneira ainda mais direta do que simplesmente sendo o novo produto cultural preferido deles: a produção realiza sessões de matinê especiais para alunos de escolas públicas, que têm a oportunidade de assistir ao espetáculo, cujos ingressos estão esgotados até janeiro do ano que vem, pelo preço de dez dólares, quando o ingresso, na verdade, custa de 200 a 3 mil doláres na mão de empresas de revenda. Além disso, oficinas de rap foram oferecidas a esses estudantes, que puderam desenvolver suas habilidades no gênero.

 

Prêmios

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Hamilton ganhou um total de 11 das 16 estatuetas aos quais concorreu nos Tony Awards de 2016: os já citados Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Coreografia, além de Melhor Direção, Melhor Trilha Sonora, Melhor Figurino, Melhor Orquestração, Melhor Iluminação, Melhor Orquestração e, é claro, Melhor Musical. Deu até peninha dos outros indicados. Mentira, nem deu.

 

BÔNUS

É claro que eu não iria conseguir fechar em dez motivos, né?

O décimo primeiro deles, caso ainda não esteja convencido, é a iniciativa #Ham4Ham. Acontece da seguinte forma: todos os dias, assentos nas melhores fileiras do teatro Richard Rodgers, onde Hamilton é encenado atualmente, são sorteados a pessoas que não tiveram a oportunidade de comprar ingressos para aquela sessão. Como se não bastasse a oportunidade, os sortudos ainda pagam o preço promocional de dez dólares. Por quê? Alexander Hamilton é o rosto na nota de dez dólares. Dessa forma, você dá um Ham pelo Ham (daí a hashtag!).

Para atrair o público para este sorteio (como se precisasse!), o elenco faz, semanalmente, algum tipo de performance na própria calçada do teatro. Quando não tem microfone disponível, eles improvisam com um megafone mesmo, e daí rolam apresentações maneiríssimas, como interações com os elencos de outros musicais, incluindo Os Miseráveis e Rent, paródias, inversão de papeis e muita, mas muita palhaçada. Selecionei alguns dos melhores:

Agora você já pode separar duas horinhas do seu tempo, correr na playlist ali de cima, abrir o o Genius (e, se necessário, o Google tradutor) e se perder nesse mundo comigo. Vem!